Qual a sua idéia de corrupção? É quase certo que você fale em desvio, por um administrador desonesto, do dinheiro público. É a idéia que se firmou hoje em dia. Mas, antes disso, a corrupção era termo mais abrangente, designando a degradação dos costumes em geral.
Como a corrupção veio a se confinar no furto do bem comum? Talvez seja porque, numa sociedade capitalista, o bem e o mal, a legalidade e o crime acabam referidos à propriedade. Por analogia com a propriedade privada, o bem comum é entendido como propriedade coletiva – e até como bem condominial, aquele do qual cada um tem uma parcela, uma cota, uma ação.
Mas o bem comum é diferente, por natureza, do bem privado. No estatuto de uma sociedade comercial, é obrigatório incluir o destino a dar aos bens, caso ela se dissolva. Se constituo uma firma com um sócio, caso a fechemos repartiremos os bens que pertencem a ela. Mas isso é impossível quando se trata da coisa pública. Há certos "bens" que só ela produz e que não podem ser divididos: virtudes, direitos e uma socialização que não só respeita o outro como enriquece, humanamente, a nós mesmos.
Pensar o mau político como corrupto e, portanto, como ladrão simplifica demais as coisas. É sinal de que não se entende o que é a vida em sociedade. O corrupto não furta apenas: ao desviar dinheiro, ele mata gente. Mais que isso, ele elimina a confiança de um no outro, que talvez seja o maior bem público. A indignação hoje tão difundida com a corrupção, no Brasil, tem esse vício enorme: reduzindo tudo a roubo (do "nosso dinheiro"), a mídia ignora – e faz ignorar – o que é a confiança, o que é o elo social, o que é a vida republicana.
UM TEMA REPUBLICANO
Pode haver corrupção em outros regimes, mas sem esse nome ou sem os perigos que traz para a república. Lembremos a tipologia de Montesquieu: há três regimes, monarquia, república e despotismo. O despotismo é um fantasma; reside no Oriente; é a grande ameaça à política, porque nele tudo é comandado pelo desejo. Os súditos do déspota desejam muito, porque, com os nervos excitados, são sensíveis a toda impressão externa. Daí que sejam lúbricos, luxuriosos, imediatistas.
O império da lei é impossível sob o calor. Não havendo autodisciplina, só pela irrestrita repressão externa se dá o controle social. Para conter o desejo sexual das mulheres, é preciso trancá-las num harém e castrar os homens que as vigiam. No calor, governar é reprimir.
O curioso é que nesse regime — mais uma caricatura que um retrato fiel dos sultanatos orientais — não há o tema da corrupção. Como se corromperia um regime cuja essência já é a degradação (a corrupção) do ser humano? Mesmo que os ministros saqueiem os cofres, não existe, no despotismo, uma regra da honestidade, uma medida do equilíbrio, um padrão da decência. Sem regra, medida ou grau, não há como falar em desregramento, em desmedida, em degradação. A corrupção só cabe quando o regime social e político valoriza o homem. Não é o caso do despotismo.
Será o da monarquia? Nela, o princípio é a honra, e portanto uma valorização está presente. O nobre preza mais a honra que a própria vida. É isso o que limita o arbítrio do soberano. Mas há dois pontos a assinalar. Primeiro, poucos têm honra – só os grandes. Segundo, a monarquia é uma hábil construção para que de um princípio filosoficamente falso – a desigualdade natural entre os homens – decorram resultados socialmente positivos. A engenharia política aqui faz que o mal produza o bem.
O preconceito é valorizado na monarquia. Dele resulta uma sociedade que, se respeita a lei, não é pela repressão externa, nem pela autodisciplina ou pela convicção de que é justo acatá-la. Em suma, na monarquia há um uso sábio daquilo que, em linguagem republicana, seria corrupção: ela dá bons frutos. Há privilégios, há desigualdade, há apropriação privada do que seria o bem público. Mas isso é da essência do regime, e é usado por ele para evitar males piores, que estariam no arbítrio do rei, tornado déspota. E por isso não é correto falar, aqui, em corrupção.
Corrupção só pode haver, como nome, num regime que a vê como negativa, como má – num regime cuja existência é diretamente ameaçada por ela. É a república. Seus padrões são altos. Nela, o bem pessoal é requisito para produzir o bem social. Individualmente, tenho de agir bem. Só quem atinge esse nível de conduta é cidadão, na república. Ou, inversamente, apenas dos cidadãos se pede esse patamar de comportamento. Não se exige isso das mulheres, escravos, estrangeiros e de todos os que terão uma cidadania reduzida ou negada. Em outras palavras, a república é o regime da ética na política.
Renato Janine Ribeiro