Nova lei de abuso de autoridade

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Em primeiro lugar é bom ressaltar que no Estado de Direito e num regime democrático, ninguém em sã consciência é contrário à punição das Autoridades que eventualmente venham a praticar abusos, portanto, não somos contra a atualização da Lei de Abuso de Autoridade e menos ainda contra a punição de eventuais abusos. Mas, é forçoso reconhecer o evidente descompasso e a inversão de prioridades dentro do Congresso Nacional, pois os mesmos Parlamentares que afirmam ser difícil e praticamente impossível conciliar a pauta das reformas com a análise e votação de leis ou emendas constitucionais que disciplinam , por exemplo, prisão após a condenação em segunda instância e maior rigor no cumprimento das penas ou ainda leis que facilitariam a investigação financeira de crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, conseguem, rapidamente, com extrema eficiência, aprovar o regime de urgência e num intervalo de poucas horas, votar e aprovar uma nova lei de abuso de autoridade.
Ao que parece, em termos de prioridade, no Congresso Nacional, é mais importante punir Agentes Públicos que eventualmente venham a abusar da sua autoridade do que melhorar a legislação sobre execução penal, resolver a infinda pendência de entendimentos sobre a prisão após a condenação em segunda instância e reforçar as leis que concedem melhores instrumentos para a investigação de crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, votando, com a mesma urgência, o projeto anticrime do Ministro Moro, por exemplo.
Mas, “habemus legem”, e essa nova lei votada às pressas em um desnecessário regime de urgência, traz alguns artigos que merecem uma análise mais profunda e causam preocupação aos Agentes Públicos, notadamente aos Promotores de Justiça que atuam no combate à corrupção e no combate às organizações criminosas, podemos citar, apenas a título de exemplo, o art. 30, assim redigido: “Art. 30. Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.”. Inicialmente se verifica que a redação do tipo penal usa de expressões e conceitos genéricos e indeterminados. Qual o conceito de justa causa fundamentada? Justa causa é um conceito que traz muita discussão acerca de sua caracterização. Um Promotor de Justiça que receba uma carta anônima apontando que determinado Agente Político ou Administrador Público ou ainda um Servidor Público que exerça cargos de chefia, está adquirindo bens em valores muito acima de seus rendimentos e colocando esses bens em nome de terceiros, numa possível conduta de improbidade e enriquecimento ilícito e resolve instaurar uma investigação preliminar ou inquérito civil para apurar eventual estes pretensos fatos, tem justa causa? E se esse investigado resolve pedir em Juízo o trancamento do inquérito civil e um Juiz, por entender que não se pode investigar denúncias anônimas, o que é também questionável, uns dizem que pode outros que não, decide trancar a investigação. O Promotor de Justiça deveria responder por crime de abuso de autoridade?
Em outra hipótese consta do Art. 31. a seguinte redação “Estender injustificadamente a investigação, procrastinando-a em prejuízo do investigado ou fiscalizado: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, inexistindo prazo para execução ou conclusão de procedimento, o estende de forma imotivada, procrastinando-o em prejuízo do investigado ou do fiscalizado.” Fica a pergunta o que seria uma prorrogação injustificada? O Promotor de Justiça pode alegar complexidade ou dificuldades decorrentes do volume de serviço e prorrogar uma investigação? e se o investigado recorrer a um Juiz que entender que a investigação não é de tanta complexidade assim e que o prazo não deveria ter sido prorrogado, o Promotor pode ser responsabilizado criminalmente?
As situações acima descritas demonstram que estes artigos tem um potencial nocivo e trazem insegurança aos agentes que trabalham no combate ao crime e à corrupção. Equivocadamente e com péssima técnica legislativa se usou de conceitos jurídicos indeterminados. É sabido que no direito penal, as definições de conduta devem ser objetivas, diretas, evitando-se, na medida do possível o uso de conceitos abertos e subjetivos. Na prática esses dispositivos podem dificultar a efetiva aplicação da lei e pior ainda podem ser utilizados de maneira maliciosa em uma antiética estratégia de defesa e resultar em inúmeras e injustas representações criminais contra membros do Ministério Público, dando azo a possibilidade e abertura de inúmeras investigações, terminando por desgastar e fragilizar a atuação dos Promotores de Justiça.
Por outro lado, se verifica que o apressado Legislador optou por criminalizar condutas que de regra representam meras irregularidades administrativas ou disciplinares e que deveriam ser resolvidas em nivel de Corregedoria ou pela atuação de Órgãos de Controle Externo, como o CNMP, por exemplo. O estudo do Direito nos ensina que o Direito Penal, como a maior demonstração de força do Estado contra seus cidadãos, só deve ser utilizado como “ultima ratio”, ou seja, quando a gravidade da conduta e o sério prejuízo aos bens tutelados, não indique outra forma de reprimir a conduta ilícita. Portanto, andou mal o Legislador ao criminalizar condutas que deveriam e poderiam ser tratadas adequadamente na esfera do direito administrativo e disciplinar. Ainda resta uma esperança, afinal esse projeto de lei será encaminhado à sanção Presidencial e passará por apreciação do Ministério da Justiça e do Presidente da República que tem poder de veto, portanto artigos com esse grau de nocividade e que contrariam a doutrina e a boa técnica legislativa, além de serem potencialmente danosos ao bom andamento dos trabalhos de combate à corrupção, podem e devem ser vetados. É o que se espera.

ROBERTO APARECIDO TURIN é promotor de Justiça Especialista em Direito Penal e Direito Público e presidente da AMMP – Associação Matogrossense do Ministério Público.