Passe livre: justo e necessário

Mesmo com as superações importantes trazidas pela evolução do mundo, a velha Carta de Atenas continua sendo um documento referencial do Urbanismo.
Uma de suas principais interpretações confere às cidades 4 funções básicas, moradia, trabalho, lazer e circulação, com a “quarta função” tendo como objetivo “só” estabelecer uma “comunicação proveitosa” entre as outras 3 funções.
Embora última na descrição das funções urbanas e sem um objetivo em si própria, em nenhum momento a Carta atribui menor importância à circulação, ao contrário, chega a tratá-la como “primordial” ou “vital” à vida urbana.
Cabe a ela conectar as outras 3 funções do Urbanismo que não funcionam desconectadas entre si. Sem circulação as cidades param.
Com o tempo os conceitos avançaram e a circulação ampliou-se no âmbito da mobilidade urbana, na qual as várias modalidades de transporte se integram, desde os pés, para articular todas as funções urbanas de forma segura, justa, sustentável e – por que não? – até prazerosa.
As cidades cresceram em dimensões físicas, população, complexidade e dinamismo. Fazê-las caber no ciclo solar de 24 horas torna-se cada vez mais difícil. Hoje, a circulação ultrapassa sua formulação original de função urbana, e chega a uma situação de condição indispensável à vida das cidades, do banco à borracharia, da fábrica à escola, da mansão ao barraco, do patrão ao operário. Basta ver o colapso geral das cidades quando das paralisações no transporte coletivo, tronco principal da mobilidade urbana.
Ou atentar para os custos de seu mau funcionamento tais como as deseconomias diversas, poluição, stress, desperdício energético, perdas de horas de trabalho e, principalmente de preciosas horas de vida do cidadão ou a mortalidade no trânsito. A solução da mobilidade urbana hoje é uma questão fundamental para todos, não só para o usuário de ônibus.
Junto com a Copa das Confederações, nas últimas semanas o Brasil vive grandes manifestações populares em quase todas suas cidades em protesto contra o desrespeito com que as coisas públicas são tratadas pelas autoridades no país. O Brasil parece afinal ter se posto de pé no seu berço esplêndido.
Um movimento pelo passe livre foi o deflagrador de toda essa saudável e democrática convulsão pública. Em resposta, de imediato muitas prefeituras reduziram as tarifas em alguns centavos.
Mas, o movimento avançou e os governantes agora buscam soluções desesperadas para reduções maiores, paliativas, mas não para o passe livre para todos, cobrado pelo Movimento Passe Livre (MPL), deflagrador das manifestações, a saída inexorável para os dias atuais.
A solução exige uma revisão de conceitos sobre a cidade e, nela, a mobilidade urbana. O transporte público é um serviço de custo elevado que serve a todos, mas quem paga é só o usuário, justo aquele em piores condições para fazê-lo. Hoje o transporte público eficiente é uma condição indispensável ao bom e saudável funcionamento da vida urbana.
O passe livre universal é a solução e deve ser pensado como o eixo de uma necessária revolução na mobilidade urbana e, por consequência, nos padrões de qualidade de vida urbana no Brasil. Não se trata da criação de um novo imposto, e sim de redistribuir entre todos aquele imposto que já existe em forma de tarifa e que é pago só por uma parte da população.
E mais, usando o transporte coletivo o cidadão presta um serviço à sociedade em geral e deveria ser bonificado no rateio total de custos numa futura implantação do passe livre universal, justo e necessário.
Nas ruas, conforto e segurança com menos poluição, acidentes, engarrafamentos, desperdício de vidas, tempo e energia. Também menos motos e carros. E é aí que o bicho pega.
JOSÉ ANTONIO LEMOS DOS SANTOS, arquiteto e urbanista, é professor universitário em Cuiabá.