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sexta-feira, novembro 22, 2024

Lei Aldir Blanc expõe exclusão e dificuldades da gestão cultural no país

A cultura foi um dos setores imediata e intensamente afetados pela pandemia de covid-19, tendo suspensas as atividades que envolvem interações humanas presenciais e coletivas, as tão ditas e temidas “aglomerações”. Após meses de luta e articulação entre a categoria, a sociedade civil e alguns parlamentares, foi sancionada a Lei 14.017/2020, que ficou conhecida como Lei Aldir Blanc (LAB) e reúne uma série de ações emergenciais ao setor cultural a serem adotadas para minimizar efeitos econômicos e sociais desta pandemia aos trabalhadores do setor. Tratei do assunto em nota técnica na 19ª Carta do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (Conjuscs) – disponível na íntegra aqui.

A Lei Aldir Blanc dispôs para estas ações três bilhões de reais para os Poderes Executivos locais aplicarem em ações por esta definidas em três incisos.

O inciso I consistiu na distribuição de metade desta provisão (1,5 bilhão de reais) para a promoção  de uma renda emergencial aos trabalhadores e trabalhadoras da cultura, renda estabelecida com o valor de R$1800,00 divididos em três parcelas mensais. Alguns dos critérios para o acesso a esta renda emergencial foram:

1. Ter atuado social ou profissionalmente nas áreas artística e cultural nos 24 meses imediatamente anteriores à data de publicação desta Lei, comprovada a atuação de forma documental ou autodeclaratória;

2. Não ter emprego formal ativo;

3. Ter renda familiar mensal per capita de até meio salário-mínimo ou renda familiar mensal total de até três salários-mínimos, o que for maior;

4. Não ter, no ano de 2018, rendimentos tributáveis acima de R$ 28.559,70;

5. Estar inscrito, com a respectiva homologação da inscrição, em, pelo menos, um dos cadastros previstos no § 1º do art. 7º desta Lei.

 

O primeiro critério citado traz uma perspectiva próxima da realidade de muitos trabalhadores e trabalhadoras do setor, quando admite a autodeclaração de atuação social ou profissional nas áreas artística e cultural nos últimos dois anos, no entanto, esta perspectiva se distancia da realidade quando (o quinto critério aqui citado) exige a inscrição do trabalhador em pelo menos um dos cadastros elencados no sétimo artigo da lei, a saber:

I- Cadastros Estaduais de Cultura;

II- Cadastros Municipais de Cultura;

III- Cadastro Distrital de Cultura;

IV- Cadastro Nacional de Pontos e Pontões de Cultura;

V- Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC);

VI- Sistema de Informações Cadastrais do Artesanato Brasileiro (SICAB);

VII- Outros cadastros referentes a atividades culturais existentes na unidade da Federação, bem como projetos culturais apoiados nos termos da Lei nº 8.313/1991, nos 24 meses imediatamente anteriores à publicação desta Lei.

Vários destes cadastros apresentam uma burocracia excessiva como a apresentação de portfólio ou currículo de arte (normalmente usado por acadêmicos de belas artes), comprovações de mérito (como críticas, reconhecimento da imprensa, além de justificativas e fundamentações teóricas), e também certidões negativas de débitos Estaduais, Federais e Dívida Ativa da União.

Como uma população de artistas carentes – afro-brasileiros, indígenas, ribeirinhos, caiçaras, circenses, artesãos, músicos de bares, artistas de rua, entre tantas outras pessoas que viviam da arte, da cultura do entretenimento e do turismo, enfrentando uma situação emergencial há meses sem renda, com dificuldades em ter comida no prato – poderia atender às exigências documentais e procedimentais necessárias para gozar do direito a uma renda emergencial de pouco mais de meio salário mínimo?

O segundo critério citado, ao exigir que estes profissionais não tenham um emprego formal ativo, também distancia a LAB da realidade de grande parte de trabalhadores do setor, que comumente exerce funções em outras áreas distintas, a fim de basilar ou complementar sua renda mensal, o que independente do montante de sua renda anual, já o exclui do acesso a qualquer provisão emergencial promovida pelo Governo Federal durante esta pandemia. Estes são alguns dos elementos que demonstram a dificuldade do acesso de uma parte significativa do setor às ações emergenciais tão necessárias no momento.

Os incisos II e III da Lei Aldir Blanc – aos quais foi destinado o restante da verba (R$1,5 bilhão) – também apresentaram uma série de incongruências. O inciso II é determinado ao subsídio mensal para manutenção de espaços artísticos e culturais, microempresas e pequenas empresas culturais, cooperativas, instituições e organizações culturais comunitárias que tiveram as suas atividades interrompidas por força das medidas de isolamento social; enquanto o inciso III, destinado à realização de editais, chamadas públicas, prêmios, aquisição de bens e serviços vinculados ao setor cultural e outros instrumentos destinados à manutenção de agentes, espaços, iniciativas, cursos, produções, desenvolvimento de atividades de economia criativa e de economia solidária, produções audiovisuais, manifestações culturais, e à realização de atividades artísticas e culturais que possam ser transmitidas pela internet ou disponibilizadas por meio de redes sociais e outras plataformas digitais.

Em ambos os casos, os critérios para a distribuição de recursos são definidos pelos Estados e Municípios, que, em tese, deveriam definir parâmetros adequados para a aplicação da LAB na região, a partir dos dados que dispõe sobre o setor cultural local, e em debates com a sociedade civil. A urgência da situação e celeridade dos prazos impostos para a destinação dos recursos acabou resultando, em muitos casos, na supressão desses debates, e consequentemente, na determinação de critérios estabelecidos unilateralmente por gestões de departamentos e secretarias de cultura espalhadas pelo país, o que gerou muitos descompassos no caminho.

Ideologia e censura

Na cidade de São Caetano do Sul, no ABC paulista, por exemplo, um critério estabelecido pela Secretaria de Cultura para o pleito aos incisos II e III foi de que os produtos culturais em questão fossem de classificação etária livre, o que dificultou o acesso de vários realizadores aos recursos, enquanto na cidade de São Paulo (SP), diversos produtos com classificação etária para maiores de dezoito anos e temática voltada à sexualidade puderam ser contemplados pela LAB.

Apesar de esta lei conferir e garantir aos municípios e estados a autonomia das gestões na aplicação dos recursos de emergência à cultura, vimos o próprio Secretário Especial da Cultura do governo federal, Mário Frias (o sétimo a ocupar o cargo neste governo até o momento) empreender uma cruzada para impedir a realização de uma live destinada ao público adulto que trataria de memórias de infância de artistas LGBTQIA+, intitulada “Criança Viada Show”, contemplada pela LAB na cidade de Itajaí (SC).

A empreitada do secretário Mário Frias atingiu o objetivo de censurar esta atividade cultural, que foi suspensa na véspera de sua veiculação pela Prefeitura de Itajaí, que também ordenou a destituição dos membros componentes da comissão local de seleção dos projetos culturais da lei de emergência cultural no município – apesar de diversas manifestações e notas de repúdio ao fato, inclusive por parte da OAB/SC. Curiosamente, alguns meses depois desta censura, o secretário Mário Frias posou armado e praticando tiro numa suposta “agenda cultural” no Museu da Polícia Militar de São Paulo, ao lado de André Porciúncula, Secretário Nacional de Fomento e Incentivo desta Secretaria Especial da Cultura. Cultura e ideologia política, afinal, são mesmo relacionadas.

Fonte: Rede Brasil Atual

 

 

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