É bom esquecermos certas coisas. Oxi! Se é. Porém não é muito bom esquecermos o que esquecemos. Bem, assim nos ensina o escritor israelense Amós Oz. Não há dúvida alguma que há muitas delícias em esquecermos determinadas coisas que fizemos em nosso peregrinar por esse mundão de meu Deus, como também é inegável que são incontáveis as amarguras que, com o correr do tempo, acabamos por colher quando, de certa forma, deletamos algumas lembranças que até a véspera tínhamos em nossa algibeira.
Se formos matutar de forma apropriada a partir dessa afirmação feita pelo referido escritor de Israel, iremos perceber que a encrenca é um pouco mais sutil. Só um pouco.
Não é que nós esquecemos certas coisas. Nada disso. Nós apenas fazemos questão de não nos lembrarmos delas, deixando-as jogadas num canto de nossa memória, para que seja tomada pelas teias do distanciamento, junto com a poeira do desprezo, por não reconhecermos nesse retrato da nossa vida nada que nos pareça significativo.
Que nos pareça significativo. Eis aí uma questão chave para avaliarmos a forma como lidamos com as memórias de nossas experiências pessoais e, é claro, das experiências coletivas que vivenciamos com nossos concidadãos dessa comunidade imaginária chamada nação.
O historiador Sérgio Buarque de Holanda, em seu “Livro dos Prefácios”, diz-nos que nossa memória seria similar a um quartinho escuro onde guardamos toda ordem de tranqueiras que vamos acumulando com o passar dos anos. Quartinho esse que não tem nem sequer uma lâmpada. Então, quando adentramos nele, o fazemos com uma lanterna em mãos e, por isso, a luz não é capaz de alumiar todo ambiente, mas sim, e tão somente, um canto de cada vez.
Aí, meu caro Watson, dependendo do que iremos ter na conta de significativo, acabaremos por fazer uma seleção atabalhoada de lembranças que, ao invés de projetar alguma luz sobre os dias atuais, irá cobri-los com uma fria sombra de auto engano.
Se um indivíduo está unicamente preocupado com as lides do dia a dia, ou tão somente com o gosto hedonístico que o fim de semana poderá lhes oferecer, fatidicamente seu olhar, quando estiver voltado para o quartinho da memória, irá priorizar as imagens que lhe tragam algum alento frente às fadigas diuturnas e que o inspire para a próxima aventura dionisíaca que o aguarda nos sacrossantos embalos de sexta e sábado à noite.
Sim, esse é apenas um exemplo caricatural, mas todos nós, cada um ao seu modo, tem no âmago de seu ser um leque de preocupações, inquietações e questionamentos que nos levam a mergulhar em nossa memória, individual e coletiva, para encontrarmos uma resposta; e esse leque indagativo é, ao seu modo, a estrela que nos guia em nossas andanças pela vida.
Por isso é tão importante refletirmos sobre as perguntas que levantamos. Por essa razão, é de fundamental importância procurarmos formular nossas perguntas de uma forma clara e cristalina. Se não o fizermos, corremos o risco de cairmos numa arapuca, como bem nos ensina o historiador Lucien Febvre. Trocando em moela, ou em qualquer miúdo de sua preferência, se não sabemos claramente o que queremos conhecer, provavelmente não iremos obter uma resposta minimamente esclarecedora.
Não há dúvida alguma que esse tipo de problema apenas acontece com os outros, especialmente com as pessoas que desprezamos com todas as forças de nossa alma, nunca conosco. Sim, gostamos, também, de alimentar essa doce ilusão em nosso coração peludinho, cientes de que raramente – para não dizer nunca – procuramos refletir sobre as questões que se fazem subjacentes às nossas inquietações que afloraram na última hora.
Aliás, refletir sobre a clareza de nossas indagações apenas é possível se abrimos as portas do quartinho de nossa memória que, nada mais seria que nosso arquivo.
Temos inúmeras formas de nos relacionar com esse arquivo; formas que podemos agrupar em duas categorias. No caso, seriam, nas palavras do filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos, as categorias da memória mecânica e da memória eidética.
Mecânica seria quando, ao sermos estimulados por algo como uma palavra, rememoramos, mecanicamente, uma determinada imagem, por termos sido, de certa forma, condicionados a evocar isso quando somos provocados por algo ou alguém.
Quanto à memória eidética, o babado é diferente. Nesta, quando somos instigados por algo ou alguém a termos de rememorar algo, ao invés de reagirmos feito um autômato, procuramos circundar essa imagem evocada e, em torno dela, levantar uma série de indagações para, desse modo, reconstruir, de forma mais profunda, a imagem tosca e mecanicamente atirada em nossas ventas e, também, redesenhar o cenário em que ela aparece diante de nós.
Resumindo: no primeiro caso apenas reagimos feito uma criatura condicionada; no segundo, agimos feito uma criança abençoada e sinceramente curiosa.
Enfim, se procuramos, na alcova de nossa alma, refletir sobre as questões que guiam nossa curiosidade, show de bola. Agora, se não nos dedicamos a essa empreitada, sinto dizer, mas estamos sendo guiados por questões que não compreendemos. Questões que possivelmente foram mal e maliciosamente formuladas. Pior. Não foram elaboradas por nós, mas sim, sugeridas sutilmente a nós e, quem as elaborou, acabou laçando e domando a nossa memória e, de quebra, fragmentando e escravizando a nossa consciência.
É isso. Fim de papo.
Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela