Depois da bonança se avizinha a tempestade

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Titulares de patentes no Brasil se valem de um dispositivo legal (parágrafo único do artigo 40 da Lei da Propriedade Industrial – LPI) que garante a eles um prazo de exclusividade superior ao prazo patentário regular de 20 anos. Isso ocorre sempre que o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) se alonga por mais de dez anos na análise e concessão de um título patentário.

Assim um depósito patentário realizado no ano de 2000 e concedido em 2008 (oito anos após) vigerá até 2020, enquadrando-se na regra geral do art. 40 da Lei da Propriedade Industrial (20 anos de vigência contados da data do depósito patentário). Um outro depósito patentário realizado igualmente em 2000, mas concedido só em 2015 (15 anos após), vigerá até 2025, aplicando-se a regra do parágrafo único do art. 40 da LPI (dez anos de vigência contados da data da concessão da patente).

O legislador buscou compensar de alguma forma o titular da patente que tivesse atraso na análise e concessão do título patentário e, com isso, visou a garantir um prazo mínimo de vigência de dez anos contados da data da concessão da patente pelo INPI. Não poderia imaginar, contudo, a face sombria e devastadora que esse dispositivo legal vem revelando à própria higidez, lógica e coerência do sistema de proteção da propriedade industrial brasileiro.

A questão ganhou relevância atualmente pelo fato de envolver tecnologias patenteadas utilizadas em medicamentos que teriam eficácia no tratamento à Covid 19 e em virtude da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.529 pelo STF, onde a Procuradoria Geral da República questiona a validade do parágrafo único do artigo 40 da LPI, imputando-o de inconstitucional.

Sem deixar de lado o alto nível da discussão existente no âmbito judicial e midiático, com artigos a favor e contra em acalorados debates que envolvem direito constitucional, propriedade industrial, concorrencial, segurança das relações jurídicas e até mesmo o impacto econômico de eventual declaração de inconstitucionalidade, buscaremos nos ater a alguns pontos que consideramos cruciais para o desate da questão.

O primeiro deles leva em conta que referido dispositivo legal foi idealizado justamente para contornar um problema de atraso excessivo na concessão de patentes no Brasil, de modo a prestigiar o interesse do titular que empreendeu tempo e dinheiro em pesquisa e desenvolvimento na obtenção de uma invenção. Até aí, nada que desabone. O ponto crítico é que essa alteração significou um alto custo para a sociedade, submetendo o cidadão comum a uma posição de exagerada desvantagem em relação ao titular da patente.

Explica-se: o depósito de uma patente e a demora na concessão pelo INPI concede ao titular uma “super patente”, na medida em que impede que um concorrente de mercado ou um consumidor final saiba exatamente até quando ela vigerá, restando condicionada essa data a um evento futuro e incerto. Assim, uma patente poderá viger por regulares 20 anos contados da data do depósito ou exceder em muito esse prazo (chegando a 25, 30 ou até mais anos) na hipótese de aplicação do parágrafo único do artigo 40 da LPI, tudo a depender do momento em que concedida pelo INPI.

Isso leva a uma situação insustentável onde o concorrente não poderá se preparar para colocar seu produto no mercado e o consumidor continuará a arcar com os “royalties” embarcados no custo de aquisição do produto por um prazo indeterminado. Sendo que a premissa básica da proteção industrial de invenção por patente é justamente garantir o acesso da sociedade à tecnologia e, ao mesmo tempo, garantir a todos que em determinada data cessará referida proteção.

Aí reside a diferença entre o segredo de negócio (conhecimentos e informações confidenciais), onde o titular não tem obrigação de revelar a público e mantém a proteção por prazo indeterminado e, de outro lado, a invenção protegida por patente, onde se impõe a obrigatoriedade de revelação pública, mas, em contrapartida, se garante o uso exclusivo pelo titular pelo prazo de 20 anos.

Lado outro, mesmo sob a perspectiva de análise de segurança das relações jurídicas, não há como se legitimar esse prolongamento do prazo patentário, na medida em que o interesse individual não pode se sobrepor ao interesse coletivo, sobretudo porque o titular poderá se voltar contra o real causador do dano, não nos parecendo adequada a atribuição desse ônus, por tabela, à sociedade.

Hipótese similar ao conceito de irreversibilidade do domínio público, estabelecida pela premissa de que uma vez expirado o prazo patentário encerra-se, automaticamente, o direito de uso exclusivo da tecnologia, de modo que, mesmo que o titular venha a obter êxito em demanda na qual busque o prolongamento, não deverá haver o restabelecimento do prazo, por já se encontrar a tecnologia sob o estado da técnica (de uso livre por qualquer um), resguardando-se ao titular eventual pleito indenizatório contra o responsável pelo dano.

Argumenta-se também que a ausência de referido dispositivo legal impediria a que o titular pudesse se beneficiar minimamente do prazo de dez anos de uso exclusivo da tecnologia, partindo-se da premissa de que o simples depósito de pedido de patente não resguarda ao titular a possibilidade de se insurgir contra terceiros pelo uso desautorizado.

Realmente não se pode negar que o direito de uso exclusivo (com a possibilidade de exclusão de terceiros) e de recebimento de indenização pelo uso indevido só exista a partir do momento em que o título patentário é concedido pelo INPI, todavia ao titular é reservado o direito de receber indenização por todo o período de infração, a contar do momento da publicação do pedido de patente ou a partir de notificação recebida pelo suposto contrafator (art. 44 da LPI).

Nesse contexto ainda há que se considerar que os inventores se encontram em uma situação paritária, analisada sob a perspectiva material e formal, ou seja, são igualmente depositantes de um pedido de patente sem que haja previsão legal que os distingam por algum motivo, não sendo aceitável que aufiram prazos de vigência patentárias distintos, atrelados e condicionados ao tempo de análise do INPI (que não tem prazo para decidir).

Ademais, o artigo 44 da LPI não distingue, para fins de indenização, uma patente concedida com base no art. 40 e outra com base em seu parágrafo único, de modo que o período referente à infração poderá ser não isonômico entre eles, propiciando um prazo maior de indenização de um em relação ao outro, premiando-se, inusitada e advertidamente, o titular supostamente prejudicado pelo atraso na concessão da patente pelo INPI.

Não parece haver, pois, argumento razoável que resista a tamanha fragilidade e inconsistência sistêmica estampada no parágrafo único do art. 40 LPI. Portanto, o oásis patentário representado por super patentes, que contam com generosíssimos e injustificáveis prazos de vigência, pode estar com os dias contados pelo STF.

Agora, avançando um pouco mais na análise da questão, será que a modulação dos efeitos, em caso de declaração de inconstitucionalidade, seria adequada ao caso? Parece-nos que não.

A uma porque titulares que se beneficiaram desse dispositivo legal contam (caso não, deveriam contar) com aconselhamento jurídico de profissionais com conhecimento suficiente a alertá-los do risco envolvido no prolongamento do prazo patentário, seja pelo debate jurídico existente em torno da questão, seja porque vilipendia premissas e conceitos básicos de direito, sobretudo o princípio da isonomia e da preponderância do interesse coletivo em detrimento do particular.

Aqui entra uma avaliação estratégica e financeira do titular em se optar pelo prolongamento da cobrança após os regulares 20 anos, o que para os mais arrojados faz sentido pelas altas cifras de royalties que continuarão a ser auferidos por anos a fio, com o atrativo de que, em caso de derrota judicial futura, os valores a serem ressarcidos certamente não atingirão o mesmo patamar daqueles cobrados, em razão do transcurso do tempo e da ausência de interesse (ou mesmo desconhecimento) de muitos que pagaram.

A duas porque a modulação, a depender da forma que for implementada, poderá impor que se mantenham intocadas as relações jurídicas passadas, o que pode representar (injustamente) a desnecessidade de recomposição do prejuízo, penalizando-se, lado outro, aqueles que de boa-fé pagaram valores de royalties por período que a tecnologia já deveria se encontrar sob o domínio público.

Em síntese, a discussão jurídica não é favorável ao titular, que só tem encontrado respaldo em poucas vozes da doutrina que se utiliza preponderantemente de um argumento retórico de que a declaração de inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 40 da LPI impactará negativamente no progresso e desenvolvimento tecnológico, econômico e social do país.

Em nosso pensar, todavia, declarada ou não a inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 40 da Lei da Propriedade Industrial, as pesquisas e os desenvolvimentos tecnológicos continuarão a ter mesma relevância no contexto social e no desenvolvimento econômico do país, nos termos preconizados pelo art. 5º, XXIX, da Constituição Federal.

Portanto, espera-se que o STF, responsável por orientar futuras condutas de depositantes de patentes nesse julgamento, valha-se de relevante premissa que leve em conta o interesse da coletividade que, por meio de legislação específica (LPI), garantiu ao titular individual determinado (e não determinável) período de uso exclusivo da tecnologia em troca de seu uso livre ao término desse prazo.