Que bom seria conseguir-se resolver a pandemia com uma vacina. E ainda melhor seria conseguirmos resolver a economia com uma segunda dose. É pertinente lembrar que as vacinas destinam-se a combater infecções que podem levar a óbito, mas somente a óbitos futuros, porque nos óbitos já inscritos elas não têm qualquer efeito. É também importante mencionar que todas as mortes ocorridas ao longo dos últimos tempos, junto com as que estão por vir, todas elas têm um profundo impacto no afetivo-emocional de seus entes queridos, bem como enormes repercussões na estrutura e na dinâmica de muitas e muitas famílias. Esta capacidade de transformar a vida das pessoas, não pode, em momento algum, ser interpretada como um dano colateral, sempre condescendentemente aceite no decorrer de uma guerra. Tem outro cenário nesta guerra que nunca podemos perder de vista. Quem for vacinado, ou não, mas tenha sido histórica e pornograficamente desfavorecido e colocado à margem da sociedade “sairá” deste momento trágico em situação de vida muito pior. Independente de a propaganda falar que esta crise humanitária trará o desenvolvimento de uma maior solidariedade e equidade social é de extrema importância não se deixar levar por essa treta. Existem sérias dúvidas que após a pandemia o mais comum dos mortais venha a desfrutar de melhorias de acesso e de tratamento nos serviços públicos de saúde. Tudo aponta para que depois da curva verifique-se o achatamento de contratos e serviços. E no final, muito provavelmente, restará só mais uma vacina no plano nacional de imunização, não mais reconhecido mundialmente pela sua excelência.
Apesar de tudo isso, em dada altura o Brasil vai conseguir mudar o atual quadro exposto desapegadamente a céu aberto. No entanto, neste preciso momento, torna-se adequado perceber que o país não está perante uma lição que precisa ser estudada e debatida, mas sim na posse de um resultado desastroso. Que se tem em mãos uma prova reveladora da absoluta falta de conhecimentos básicos, merecedores de uma péssima nota, não de pesar ou de rodapé, mas sim de seleção. Este “ENEM” Exercício Nacional de Emancipação e Maturidade, aplicado sem aviso prévio a todos os brasileiros, veio demonstrar de forma inequívoca que muita boa gente considera não ser necessário saber-se fazer as coisas. Que ainda dá para fazer de qualquer jeito. Isso faz-me recordar o dia que pintava o muro do quintal do meu jeito e o meu filho veio pedir-me para ajuda-lo a colocar a sua pequenina nave na lua. Rápido respondi-lhe que não ia fazer isso. Porém, mais tarde e mais atento pude corrigir-me e explicar-lhe que isso não ia ser fácil, pois o pedido dele era um enorme desafio muito semelhante à luta que se trava contra um vírus capaz de destruir a espécie humana e que essa missão planetária só teria sucesso se tivesse a força combinada de vários saberes, diferentes chefes e muitas, muitas outras pessoas. Ele conseguiu entender fácil, mas eu é que não consigo compreender o lance de se jogar milhões e bilhões sobre um problema, sabendo-se já, através dos livros de história, que esse jeito de resolver as coisas não é por si só uma solução milagrosa.
Como não sei decifrar o enigma dos milagres, sempre me questiono onde estão os mais responsáveis, mas não vou esconder o quanto isso me deixa desnorteado. Fico sem saber se sonhei ou vi todo o tipo de executivos perdidos de um lado para outro, seguidos por legislativos iluminados por uma luz própria, mas totalmente desfocados, debaixo do voo de um grupo de freelancer dispostos a baixar jurisprudência. Nem sei de onde veio a imagem da academia afastada, acossada a um canto de uma sociedade isenta de ritmo, mas muito alinhada com movimentos comerciais e correrias policiais. Até aqueles militares pelados da farda e pastores em vassouras parecem-me um sonho onde só o pessoal da saúde e da limpeza se apresenta com alguma lógica. Felizmente que temos jornalismo, assim fico mais seguro não se tratar de alucinações, mas sim de uma brincadeira generalizada onde se deita por terra a vergonha junto com o povo.
Rui Perdigão