Experienciar é viver para além dos limites impostos
Simone de Paula Rocha Souza
Há um comportamento de eternidade nos caramujos.
Para subir os barrancos de um rio, eles percorrem um
dia inteiro até chegar amanhã.
O próprio anoitecer faz parte de haver beleza nos
caramujos.
Eles carregam com paciência o início do mundo.
No geral os caramujos têm uma voz desconformada
Por dentro.
Talvez porque tenham a boca trôpega.
Suas verdades podem não ser.
Desde quando a infância nos praticava na beira do rio
Nunca mais deixei de saber que esses pequenos
moluscos
Ajudam as árvores a crescer.
E achei que esta história só caberia no impossível.
Mas não; ela cabe aqui também .
São os versos do poeta Manoel de Barros que também me inspiram a escrever, talvez pela similitude aos temas que ele escolhe, extrai a melhor seiva das coisas mais simples, que nossos olhos, de tão desapercebidos, muitas vezes não conseguem ver. É nas sutilezas que nossos temas se aproximam, pois narrar sobre as especificidades das crianças com Transtorno do Espectro Autista – TEA exige um olhar atento ao que elas têm para nos ensinar.
Ao observar como “eles carregam com paciência o início do mundo” o poeta nos revela onde reside o segredo de nossa existência, do início das coisas, a paciência para entender como cada pessoa se constitui e se desenvolve, as especificidades que a compõem enquanto sujeito no mundo. As experiências que ousamos viver é que nos revelam não somente a grandeza de que “o próprio anoitecer faz parte de haver beleza nos caramujos”, mas também que pequenas coisas, às vezes imperceptíveis, descortinam a nós, expectadores atentos, a verdadeira essência da vida.
Pois foi justamente uma atividade banal, corriqueira – ir ao cinema –, que desencadeou a experiência ímpar da qual venho falar, vivida por um grupo de crianças com TEA e suas famílias, entre elas, minha filha e eu. Isso só acontece uma vez ao ano, geralmente no mês de abril, dedicado à conscientização sobre o autismo. A Associação Rondonopolitana de Pessoas com Transtorno Autista – ARPTA, no último dia 14 de abril, organizou, junto à administração do Rondon Plaza Shopping, a sessão de cinema “Cine Azul”, com o filme “Pedro, o coelho”. Todas as adaptações necessárias foram feitas para atender ao público em questão, desde a acessibilidade, som, iluminação e horário até o respeito à liberdade com que cada criança poderia aproveitar este momento, sem receio de causar estranheza. Esta ação fez parte de uma programação de atividades desenvolvidas pela associação e seus parceiros, ao longo deste mês, com o intuito de contribuir para a conscientização da sociedade sobre o autismo.
A leveza com que cada criança viveu este momento me deixou emocionada. Algumas corriam livremente pelo espaço da sala do cinema. Por vezes, detinham-se ao que estava sendo exibido na grande tela, mas logo voltavam para o que estavam fazendo anteriormente. Outras, sentadas ao lado de suas famílias, apreciavam o momento inédito que lhes fora oportunizado. Surgiram brincadeiras de roda, das quais minha pequena Geovanna participou, sem normas, simplesmente usufruindo do prazer de rodar e brincar com outras crianças: uma infância se revelando sem rótulos, no simples ato de brincar e conviver. Ninguém para chamar a atenção porque estavam fazendo barulho ou porque não paravam quietas, ou para dizer que naquele espaço não se poderia brincar.
Ao refletir sobre este cenário de possibilidades que se descortinou diante de meus olhos, rememoro os versos do poeta, ao dizer que “suas verdades podem não ser”, e penso que, de fato, não são. Nossa sociedade normatizada está tão acostumada com as verdades cristalizadas impostas ao longo de uma história de segregação e preconceitos, que, infelizmente, na maioria das situações, são aceitas como únicas, um padrão a ser seguido.
Com isso, calam-se muitas vozes, contudo, ainda que timidamente, elas insistem em ecoar. Junto-me a elas, no sentido de questionar: que sociedade dita inclusiva é esta que presenteia nossas crianças com TEA com um dia ao ano para que elas tenham acesso à cultura e ao lazer? Por que elas não podem, como todas as outras crianças, ter acesso ao que a elas tem sido negado por anos de silenciamento?
É este eco que quero aqui fazer ressoar. Ao lembrar-me do quão significativo foi aquele momento, aproveito para, em um esperançoso delírio, expresso pelos versos de Manoel de Barros, dizer que “achei que esta história só caberia no impossível. Mas não; ela cabe aqui também”. Uma história escrita nas sutilezas do convívio entre os diferentes, uma história que cabe em qualquer lugar onde existam pessoas sensíveis às especificidades do outro, desse outro que se constitui à medida que permito que ele ocupe os espaços que lhe são devidos, por direito.